Essay #7 in the Data and Pandemic Politics series on data justice and COVID-19
Editors’ Note: Fernanda Carrera examines how the illusion of scientific objectivity, which is the basis for representing society and the pandemic’s effects through digital data, in fact preserves and reproduces unequal relations of power. The experiences of people who are already subject to inequality and unfairness are misreported through proprietary data technologies belonging to, and operated by, the winners in processes of digitalisation – but this is masked by the claim that data represents society objectively and dispassionately. It is only by showing the oppression this claim causes that we can understand how technology is affecting our social reality.
The editors would like to thank Rafael Evangelista and Rodrigo Jose Firmino of the Latin American Network of Surveillance, Technology and Society Studies (LAVITS) for curating essays from Latin America. Translation into the English language by Aaron Martin and Linnet Taylor.
English translation follows Portuguese text.
Do ponto de vista comunicacional, um dos efeitos fundamentais da pandemia de COVID-19 se deu no plano das tensões entre “políticas de representação”. Discursos e materialidades pautados pela ficção da objetividade, como aqueles que envolvem o campo jornalístico, científico e tecnológico, foram desnudados em uma revelação dos seus processos subjetivos, assimétricos e problemáticos de construção de sentidos. A crise, portanto, não somente expôs as desigualdades, como questionou os aparatos culturais que definem regimes representacionais e controlam os modos de ver e ser visto.
Viu-se, então, o poder dos contra-públicos, reivindicando que a pauta jornalística abandonasse a narrativa do “novo normal”, que incluía a preocupação com a vida dentro dos apartamentos, as atividades profissionais e de lazer a partir de dispositivos de conexão, para o empenho em mostrar vivências que há muito não eram normais, porém naturalizadas, de pessoas em situação de rua e em lares insalubres que não permitiam ou possibilitavam o necessário distanciamento. Aliás, foi possível perceber que havia distância considerável entre a prática noticiosa e a compreensão dos dados sobre íduos marginalizados, sobretudo sob o recorte de raça, classe e gênero, que viram a pandemia como mais um obstáculo potente às suas existências.
Dados, portanto, matéria-prima do discurso científico, foram perdidos, negligenciados, mas também negociados e reivindicados, revelando as modulações éticas que podem delinear de forma duradoura os caminhos do conhecimento. No Brasil, a falácia da abrangência “democrática” da COVID-19, que atingiria a todos de forma igualitária, quase foi consolidada se não fosse pela atuação de movimentos e organizações civis que evidenciaram a subnotificação, especialmente, em torno da raça. O Instituto Luiz Gama, presidido por Silvio de Almeida, e o grupo de trabalho Saúde da População Negra, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, por exemplo, foram fundamentais tanto para apontar a subnotificação de casos e mortes de indivíduos negros, como para expor que as recomendações médicas deveriam considerar especificidades sociais de sujeitos em situação de vulnerabilidade: negros morrem mais porque “raça é a maneira como a classe é vivida” e têm acesso precário não somente a serviços de saúde, como também a saneamento básico e à higienização cotidiana, assim como à presunção de inocência, caso apareçam usando máscara em determinados contextos. Nesse sentido, a pandemia expôs a miopia da bolha social burguesa, que enxerga apenas as vivências daqueles que estão perto de si. Expôs os sujeitos por trás destes discursos envoltos pelo véu da objetividade, que generalizam saberes e demandas a partir dos filtros de suas experiências: brancas, masculinas, elitistas e heteronormativas.
Em meio, portanto, à percepção crescente dos efeitos destas generalizações míopes e narcísicas em diversos âmbitos sociais, pode-se dizer que o domínio das tecnologias digitais também não anda sendo diferente. Se, por um tempo expressivo, houve predominância de perspectivas entusiastas em torno do “dataísmo”, estudos recentes surgem como narrativas de resistência à neutralidade e ao endeusamento das predições e dos comportamentos destes aparatos tecnológicos, que muitas vezes parecem mais uma ferramenta em prol do discurso colonial. Códigos algorítmicos, mecanismos de inteligência artificial e aprendizado de máquina, portanto, embora definidos por padrões matemáticos, podem ser utilizados como artefatos de ameaça a princípios democráticos, discriminação e injustiça social. Sendo assim, não somente invisibilizam determinados sujeitos e fixam contornos identitários cerceadores, como exploram corpos, histórias e indivíduos em prol de narrativas de soberania e segregação, em uma lógica tecnológica, de fato, atrelada à colonialidade do poder.
A colonialidade tecnológica, então, é um sistema de manutenção de poder e dominação, mais do que somente discriminatório. Parte, novamente, do discurso ardiloso da objetividade e da neutralidade, para reforçar narrativas de subjugação, especialmente, em torno de raça, classe e gênero. Estes dispositivos são modos contemporâneos de definir aos mesmos sujeitos lugares de abundância e privilégio, uma vez que a lógica exploratória, agora codificada, afeta alocação de recursos, tomadas de decisão jurídicas, delineamentos éticos e dinâmicas geopolíticas de poder. É preciso reconhecer, portanto, tanto os impactos nocivos a indivíduos em situação de vulnerabilidade social—em torno de vigilância, controle, culpabilização e discriminação—quanto evidenciar, de forma definitiva, que estas ferramentas servem a outros sujeitos como mecanismos contemporâneos de distinção e garantia de vantagens. Ou seja, se parece óbvio que a colonização implica em um corpo colonizado e um sujeito colonizador, parece nublada a percepção de quem é este último. Se é fácil reconhecê-lo nos grandes conglomerados de empresas de tecnologia, informação e comunicação, não parece tão óbvio no plano das benesses cotidianas, ordinárias, diárias, elementares.
Parece ser urgente o destaque, então, a este lado da moeda: se a crise da objetividade expõe os impactos nocivos destas materialidades a alguns, deve evidenciar também os favorecimentos a outros, já que estes últimos parecem livres, absolutos, meritocráticos. Se há corpos explorados pela precariedade e ausência de direitos dos trabalhos de plataforma, há aqueles que se regozijam da economia proporcionada pela utilização de recursos humanos baratos; se há aqueles para quem se atribui culpa quase imediata, há outros para os quais a instantaneidade é no domínio da inocência; se há aqueles percebidos como ignorantes tecnológicos, há, portanto, aqueles que se consideram missionários da tecnologia, levando saberes elevados a seres primitivos; se há aqueles que sofrem por distintas formas de representação subalternizantes, é porque há outros que lucram pela associação de seus corpos a símbolos de poder e prosperidade; se há aqueles para quem não é permitida a ascensão financeira (com redlining de acesso a crédito, por exemplo), é porque há sujeitos que desejam manter-se no topo privativo da bonança.
O processo de descolonização destes discursos, espaços e práticas, enfim, deve emergir do incômodo destes sujeitos, em um processo quase pedagógico de mostrar que suas existências são construídas e representadas sobre as inexistências alheias. O ponto de partida hoje é a reivindicação do domínio sobre as narrativas, questionando o campo produtivo que manteve sujeitos detentos de extremo poder em lugares de neutralidade. Viu-se, em tempos de crise sanitária, que o questionamento sobre a relevância representacional da pauta jornalística passa pelo entendimento de quem a produz, assim como os resultados apresentados pelo discurso científico podem ser ressignificados a partir da substituição dos sujeitos pesquisadores. Da mesma forma, o campo tecnológico vê colapsada a sua fantasia da objetividade matemática, deixando nítida a potência das suas materialidades para a manutenção de relações desiguais de poder. Despertar do delírio objetivo se tornou, então, premissa fundamental para a compreensão das tecnologias e dos seus efeitos sobre a realidade social.
Fernanda Ariane Silva Carrera atua na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Seus interesses de pesquisa incluem raça, gênero e representação no ambiente digital, bem como publicidade cibernética, consumo e sociabilidade em sites de redes sociais.
The Pandemic and Representation — between the crisis of objectivity and technological coloniality
There is much still to be understood by employing an intersectional perspective on the use and appropriation of technologies, both in relation to the use of phones for sexting and to how the internet
From a communications point of view, one of the fundamental effects of the COVID-19 pandemic has been on the level of tensions between “politics of representation”. Discourses and materialities guided by the fiction of objectivity, such as those involving the journalistic, scientific and technological fields, have been exposed in a revelation of their subjective, asymmetric and problematic processes of meaning construction. The crisis, therefore, has not only exposed inequalities, but has also brought into question the cultural apparatuses that define representational regimes and control ways of seeing and being seen.
The power of counter-publics has been seen in Brazil, claiming that the journalistic agenda has abandoned the narrative of the “new normal”, which ranged from concerns with life inside apartments, the professional and leisurely activities performed on connected devices, to the effort to show experiences that were not normal, but normalized, of people living on the streets and in unsanitary homes that do not allow the necessary social distance. In fact, it has demonstrated that there is a considerable gap between news-making and the understanding of data on marginalized individuals, especially in terms of race, class and gender, who see the pandemic as another powerful obstacle to their existence.
Therefore, data, the raw material of scientific discourse, have been lost, neglected, but also negotiated and claimed, revealing the ethical modulations that shape paths to understanding. In Brazil, the fallacy of the “democratic” effects of COVID-19, which would affect everyone equally, would almost be accepted if it were not for the activities of social movements and civil organizations which have shown evidence of underreporting, especially around race. The Luiz Gama Institute, chaired by Silvio de Almeida, and the Black Population Health working group, of the Brazilian Society of Family and Community Medicine, for example, have been instrumental in pointing out the underreporting of cases and deaths of Black people, as well as arguing that medical interventions should consider the social specificities of subjects in situations of vulnerability: Black people in Brazil die more because “race is the way the class is lived” and have precarious access not only to health services, but also basic sanitation and daily hygiene, as well as the presumption of innocence if they appear wearing a mask in certain contexts. In this sense, the pandemic has exposed the myopia of those in the bourgeois social bubble, who see only the experiences of those who are close to them. It has exposed the subjects of official discourses wrapped in claims of objectivity, which generalize knowledge claims and demands through the filters of particular experiences: white, male, elitist and heteronormative.
Given this growing understanding of the effects of these myopic and narcissistic generalizations for many social groups, we can see the same thing occurring in the digital domain. If, for a while, enthusiastic “dataism” predominated, recent studies present narratives of resistance to this idea of data’s neutrality and to the deification of prediction and behavior through these technological devices, which often seem a tool of colonial discourses. Algorithmic code, artificial intelligence and machine learning systems, therefore, although defined by mathematical parameters, can be used in ways that threaten democratic principles, and exert discrimination and social injustice. Thus, not only do they invisibilize certain subjects and fix in place constraining definitions of identity, they also focus on bodies, stories and individuals in favor of narratives of sovereignty and segregation, in a technological worldview linked to colonial forms of power.
Technological coloniality, then, is a system of maintaining power and domination, rather than just discrimination. It starts, once again, from calculated claims of objectivity and neutrality, to reinforce narratives of subjugation, especially around race, class and gender. These devices are today’s ways of defining spaces of wealth and privilege for their subjects, since the analytical logic, now codified, determines resource allocation, legal decision making, ethical decisions and geopolitical dynamics of power. It is necessary, therefore, to recognize both the harmful impacts to individuals in situations of social vulnerability—in the form of surveillance, control, blame and discrimination—as well as to demonstrate clearly that these tools serve their other subjects as today’s mechanisms for identifying the worthy distinction and guaranteeing them advantages. However, although it seems obvious that colonization implies a colonized body and a colonizing subject, we find it less easy to identify the latter. Although it is easy to recognize it in technology, information and communication multinationals, it does not seem so obvious on the level of daily, ordinary, elementary interventions.
It seems urgent, then, to highlight this facet of the problem: if the crisis of objectivity exposes the harmful impacts of these interventions on some people, it must also show the benefits it brings to others, even though those benefits may seem free, absolute and meritocratic. If bodies are exploited by precarity and lack of rights in platform work, there are those who benefit economically from cheap labor; if some are instantly accused, others can instantly demonstrate their innocence; where some are perceived as technologically ignorant, others are missionaries of technology, bringing elevated knowledge to primitive beings; if there are those who suffer due to being represented as subalterns, it is because there are some who profit from marking their own bodies with symbols of power and prosperity; if there are those for whom financial progress is not allowed (due to redlining access to credit, for example), it is because there are subjects who wish to remain in control of the profits.
The process of decolonizing these discourses, spaces and practices, in short, happens at the expense of the comfort of these subjects, in an almost pedagogical process of showing that their existences are built and represented thanks to the others’ non-existence. Our starting point should be to reclaim those narratives, to question the modes of production that keep people captive to extreme power, trapped in neutral space. Public health crises have always shown that the ability to question journalistic agendas depends on the understanding of those who produce it, just as the findings of scientific studies can be reinterpreted based on the choice of research subjects. In the same way, the technological field is seeing its fantasy of mathematical objectivity collapse, highlighting in turn the power of its related materialities to maintain unequal power relations. Awakening from this delusion of objectivity, then, becomes the starting point for understanding technologies and their effects on social reality.
Fernanda Ariane Silva Carrera works at the School of Communication at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) and is Professor of the Postgraduate Program in Communication of the Fluminense Federal University (UFF). Her research interests include race, gender and representation in the digital environment, as well as cyber advertising, consumption and sociability on social networking sites.
Suggested citation: Goldsman, F. and Montenegro, M. F. (2021, February 11). “Sextear” en Guatemala — Difusión no consentida como violencia digital en contexto de pandemia. Data and Pandemic Politics, 8. https://doi.org/10.26116/datajustice-covid-19.00Suggested citation: Carrera, F. (2021, January 20). Pandemia e representação. Data and Pandemic Politics, 7. https://doi.org/10.26116/datajustice-covid-19.007